Pedalando para a vida não parar

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Foto: acervo pessoal Carlos Henrique de Andrade

Por Carlos Henrique de Andrade

Bom, era 1996, 1997, por aí. A maré pra mim não tava pra peixe, amigo! O banco que eu trabalhava tinha falido e eu me encontrava casado, com três filhos pequenos, e administrando a grana da rescisão. A minha preocupação ia aumentando à medida que as coisas iam ficando mais difíceis.

Nessa época eu fumava. Fumei durante 29 anos, cara! Como eu pude?? Sou músico também. Eu tocava à noite e trabalhava na área financeira desse tal banco no período da manhã/tarde. Vida de músico meu camarada, já viu! Cigarro e bebida é coisa quase que obrigatória pra maioria! Assim era comigo também. Tem neguinho que vai nas drogas também. Mas eu nunca fui bom em vícios. Inclusive nem pra álcool nem pra cigarro, coisas que eu até gostava.

Com a tensão dos problemas se acumulando e consequentemente as dificuldades, maiores a cada dia (depois que o banco faliu eu botei de vez os dois pés na música, loucura total!), comecei a cultivar uma úlcera duodenal vorás. Tinha dia em que durante uma apresentação musical eu saía pra vomitar e/ou evacuar sangue e depois voltar pra tocar! O leite das crianças era o que importava. Na minha cabeça atordoada eu nem me tocava que continuando a beber (só bebidas destiladas sem gelo!) e a fumar em estava literalmente me matando. Meu casamento começou a dar sinais de que não sobreviveria a tantas intempéries e o meu estado de saúde só piorando! Escuta só!

Eu amanhecia injuriado e de mal humor todos os dias! Eu e a “patroa” sempre preocupa e queixosa com toda a razão, hoje eu vejo, discutíamos e brigávamos constantemente. A coisa foi indo, foi indo até que num dia desses assim nós nos desentendemos de vez e nos separamos. Saí de casa com mala e cuia. Me orgulho de nunca ter deixado meus filhos e minha “ex” na mão! Mesmo porque, milagrosamente, após termos decidido seguir cada um o seu caminho eu descolei um trampo! Vendedor de instrumentos musicais! Caí dentro pra caramba! Comecei a ganhar grana e banquei tudo até eles entrarem pra faculdade! Mas isso foi um caminho grande! Não foi da noite pro dia nem foi molezinha não!

Logo que eu recomecei a trabalhar, toda essa situação nova ainda mexia muito comigo. Tinha saudade dos meninos. Me sentia vazio. A minha única companhia era a minha guitarra e a minha úlcera, que naquela altura já se tornara uma “úlcera de estimação”. Foi então que dias depois, despretensiosamente, eu esbarrei com um conhecido. Um porteiro de um prédio da rua em que estava morando, lá no Rocha, subúrbio da cidade do Rio de Janeiro. Papo vai, papo vem, o papo descambou pra bicicleta. Era bicicleta dali, bicicleta pra lá, até uma hora que ele disse que tava vendendo uma bike de 10 marchas, Caloi de corrida. Mas das antigas! De ferro! Meio pesadinha e tal mas bem conservada pra caramba.

Bom! Comprei a “bichinha”! E pô, fiquei felizão! Muito, muito mesmo! Senti a vida meio que voltando e isso me enchia de alegria. O Rocha é um bairro muito próximo à Quinta da Boa Vista, onde fica o zoológico da cidade, o Palácio Imperial, e é um grande parque público hiper arborizado! Comecei a levar o meu filho mais novo pra dar uns passeios por lá, as duas meninas mais crescidas eu levava pra dar um rolé de outra forma porque minha bike não tinha garupa e o meu garoto ia de boa no ferro do quadro adaptado com umas boas espumas que eu colocava. Ele adorava! Começava aí a minha recuperação. A “nossa”, melhor dizendo. Eu, filhos, a “ex”, enfim.

Só foi chato um dia que eu tive uma baita crise de úlcera e acabei internado quatro dias de dieta zero. Aí foi o grande divisor de águas! Nesse dia decidi fechar a boca geral! Parei de comer mal, beber álcool regularmente e tirei cigarro da minha vida! Tudo isso repentinamente! Fiquei pilhadíssimo! Me mordia de tanto estresse! Pensava no que eu tinha perdido. Não no que eu podia ganhar. Uma grande “Zebra” esse pretensioso “aprendiz de cronista” aqui.

E foi um dia de abstinência crônica e estresse lá no alto que sem pensar eu peguei a bike e saí pedalando! Sem rumo mesmo! Era um sábado ou um domingo! Eu estava no Rocha. Pra quem conhece o Rio, peguei a “Ana Neri” na contramão, atravessei a passagem de nível ferroviária, “Vinte e quatro de maio”, “Radial Oeste”, Praça da Bandeira, Presidente Vargas (já no centro da cidade), Rua de Santana, Rua do Riachuelo, Lapa, Aterro do Flamengo, ciclovia da zona sul, Flamengo, Botafogo, Copacabana, Ipanema e Leblon! Mais ou menos aí, pedalando uns, o que?? Uns sessenta, oitenta km?? Quem souber pode ajudar no palpite! De ida! Fora a volta!

Irmão, cheguei no final do Leblon com a cabeça na mão de tanta dor! Era verão no Rio, imaginam?? Quarenta graus! Mas ao mesmo tempo eu estava muito entusiasmado e feliz! Com um bem-estar na alma imenso no peito, apesar da cabeça doendo. E o que foi melhor! A minha agonia e vontade de fumar tinha se desvanecido completamente! Bem, naquele momento compreendi o quanto aquela bike velha estava significando pra minha vida!

Desde então comecei a pedalar grandes distâncias. Voltei à zona sul do RJ outras vezes. Passei a pedalar toda a orla da Barra da Tijuca regularmente, ida e volta sempre. Visitei vários outros bairros do Rio pedalando. Visitar os amigos? Agora era só assim, usando a bike como meio de transporte. Enfim, comecei a me relacionar de uma forma muito especial com esse veículo tão simples e ao mesmo tempo e cada vez mais prazeroso e fundamental na minha vida. Hoje é o meu lazer predileto.

Foto: acervo pessoal Carlos Henrique de Andrade
Foto: acervo pessoal Carlos Henrique de Andrade

A bicicleta me deu um norte, um rumo, posso dizer. Me ensinou que eu posso romper barreiras, ir além. Me ensinou a ser melhor, mais calmo, paciente e menos tenso. Nunca fui um atleta e nunca serei. Minha relação com a bike e com a vida hoje é uma coisa mais contemplativa. De paz de alma. Tenho cinquenta e oito anos. Estou até razoavelmente bem pra idade mas é evidente que já desfrutei de um melhor preparo físico desde a a época em que descobri e coloquei a bicicleta na minha vida. Pedalo hoje na medida do meu possível e defendo um modus vivendi com as bikes incluídas em definitivo nas vidas das pessoas, das cidades e dos países. Com uma bike do lado a gente parece que presta mais atenção nas coisas realmente importantes dessas nossas rápidas existências. Hoje rápidas até demais, não acham? Pra mim ela foi tudo. Um recomeço. Um renascimento.

E pra você??
Por Carlos Henrique de Andrade,

Bacharel em Comunicação Social, Técnico em Computadores, Músico e simpatizante das bikes e de quem usa bikes.

carlos.data@hotmail.com

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