Por Klaus Bigelli
Cicloturismo no Uruguai: Na estrada e na vida “Quem menos tem é quem mais compartilha”
Assim que o dia raiou, saindo de Punta Del Diablo, Uruguay, retomei o meu caminho. Início de inverno em pleno Uruguay, o Brasil já ficara pra trás há mais de dois dias de viagem. Naquela luz e o ar seco fazia o horizonte dos pampas parecer infinito, com a Ruta 09 toda a frente, longa, interminável.
Passando por uns cavalos que pastavam a beira de uma lagoa descobri que é verdade o que dizem: o frio é psicológico. Ao reparar que o brilho das águas na verdade era uma crosta de gelo, de imediato passei a bater os dentes de frio.
Agora certo de que o frio realmente é psicológico, me concentrei naquele horizonte hipnotizante e aproveitando o vento a favor segui pedalando numa boa velocidade. Senti falta do ciclo computador, cujo imã havia perdido nas areias do Brasil, ainda na Barra do Chuí.
Assim, em plena estrada deserta, somente com o barulho do vento como companhia, num ritmo de pedalada frequente, compassada, que passou a soar como um mantra, esvaziando a minha cabeça me levando a uma total ausência de pensamentos, que era quebrada apenas em pequenos lampejos, trazendo rostos conhecidos, situações vividas há muito tempo e logo me esqueci do mal estar do frio e assim continuei por quase três horas, totalmente inserido na paisagem até ao longe avisto um pequeno grupo de pessoas em minha direção. Ainda distante, sem saber se tratava de uma carroça e de quantas eram as pessoas, curioso, acelerei o ritmo, me dando conta de que havia horas que não falava om outro ser vivo.
Chegando perto me deparei com um casal, seus três filhos e um vira-latas. O homem e um filho pré-adolescente puxavam a carroça enquanto a mulher e um casal de crianças os acompanhava em meio a brincadeiras. Lógico que a curiosidade era mútua. De um lado um brasileiro viajando de bicicleta, com bolsas amarradas de todo jeito e vestindo capacete. Do outro, eu, depois de uma manhã inteira me deparo com uma família, numa felicidade contagiante, puxando a própria carroça.
Foi quando descobri uma profissão totalmente longe da minha realidade. Catadores de lenha. Esta família sobrevive catando madeira, seja de galhos e troncos caídos no caminho, como também de reciclagem, como pallets e embalagens de madeiras deixados pelos caminhoneiros ao longo da estrada, em postos de combustível ou onde mais encontrar, para vendê-las para outras famílias que a noite acenderão suas lareiras.
Não precisa dizer o quão humilde era esta família, roupas velhas, poucos dentes. Logo após matar a curiosidade deles, de onde vinha, para onde ia, etc., insistiram em saber se precisava de alguma coisa. Ofereceram pousada em sua casa que ficava alguns quilômetros dali. Agradeci, dizendo que não era necessário, pois estava programada a minha chegada naquela tarde no Lago Garzon e teria que pedalar, pelos meus cálculos, até por volta das 16 horas. Ou seja, por mais umas cinco horas. Então ofereceram insistentemente o seu almoço e de tão felizes e orgulhosos de receber um estrangeiro em sua terra, que para não ofende-los, resolvi aceitar.
Não me arrependi. De uma velha garrafa térmica o homem preparou um mate, que sorvemos vagarosamente, e para comer desembrulharam um pão com salame. Devo dizer que foi o melhor salame que comi na minha vida e segundo a mulher era caseiro, feito por uma amiga. Da minha parte ofereci bananas e barras de cereal para as crianças. Ficamos ali não muito mais de meia hora.
Nos despedimos e cada um seguiu o seu destino. No meu, voltei aos meus devaneios e neles constantemente vinha aquela família que me impressionou um bocado. A humildade e a alegria em compartilhar o pouco que tinham com um desconhecido me contagiou pelo resto daquela viagem maravilhosa.
Ainda hoje eles me vêm no pensamento, principalmente nos dias frios. Será que viram em mim um companheiro de estrada? Será que ainda estão catando lenha? Será que guardaram um pouco para acender sua própria lareira? O que estarão fazendo as crianças? Que Deus abençoe Dario, Alba e as crianças Andres, Daniel e Estela.
Numa cicloviagem são as pessoas que encontramos no caminho que completam a paisagem. Mesmo em um contato de poucos minutos, nos deixam saudades. Como o índio na praia de Caraíva, quando fazia a Rota do Descobrimento na Bahia ou do agricultor mineiro, quando fazia o Caminho da Fé. Mas isso são outras histórias.
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Parabéns Klaus!!!
O relato e a forma como você descreve sua cicloviagem são apaixonante, me coloquei no seu lugar, merece um livro. 🙂
Belíssimo relato! E também extremamente humano.