Alerta de spoiler: esse texto não trata a bicicleta como a máquina que vai salvar a humanidade de todas as suas mazelas.
Esse texto trata a bicicleta como um veículo (instrumento, objeto da nossa cultura…) que pode contribuir para a educação das sensibilidades. E de como podemos nos aproveitar disso para melhorar a vida nas cidades.
Tenho falado sobre o assunto aqui no blog, nas minhas aulas e em diversos espaços, sempre que tenho a oportunidade. A bicicleta está aí como a conhecemos há pouco mais de 150 anos, o que considero um tempo considerável. São alguns anos a mais do que o próprio automóvel. Apesar disso, nossas cidades – e muitas vezes, nossas sensibilidades – não estão preparadas para a bicicleta. E o que é pior, para as pessoas que estão pedalando.
Insensível, eu?
Em setembro de 2011 foi inaugurada em Belo Horizonte a ciclovia da Savassi, obra tão esperada da nova geração das ciclovias da cidade. Eu esperava ansiosamente pela obra, e logo nos primeiros dias fui lá pedalar. Fui com a alegria de um ciclista urbano que pedalava há 10 anos na cidade e nem sabia o que era ciclovia. Voltei pensando que seguiria pedalando junto aos carros, como sempre fiz. Ainda no calor da pedalada, escrevi aqui no blog um artigo com as minhas impressões (que pode ser lido aqui). Nele, eu já mencionava a falta de sensibilidade das pessoas para a bicicleta e para aquele novo espaço da cidade:
Como pode uma pessoa que mora, trabalha ou estuda na região, que sempre transitou por ali, não perceber que o asfalto cinza escuro de antes agora convive com um caminho lindo, colorido de verde e vermelho? E mais, como ficar indiferente a isso?
Eu via pessoas paradas conversando em cima da ciclovia, mamães empurrando carrinhos de bebê, vi um vendedor que tinha uma calçada bem larga mas preferiu colocar seu carrinho de frutas na ciclovia. Sensação de frustração total.
A despeito de todos os problemas que encontrei na época, percebo hoje que a minha sensibilidade sobre aquele novo espaço também precisava melhorar. Eram os primeiros dias, e posso utilizar esse contexto tanto pro vendedor de frutas – que está de volta à calçada – quanto pra mim, que estou de volta à ciclovia 🙂
A novidade e a sensibilidade
Machado de Assis era cronista do jornal Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, e escreveu diversos textos sobre a chegada do bonde elétrico na cidade (que você pode ler aqui). Em alguns demonstrava saudosismo pelo bonde de tração animal, e em outros, desconfiança sobre o moderno carro elétrico. Num deles, em 23 de outubro de 1892 disse:
Um precioso amigo meu, hoje morto, costumava dizer que não passava pela frente de um bond, sem calcular a hipótese de cair entre os trilhos e o tempo de levantar-se e chegar ao outro lado. (Machado de Assis)
De fato, a chegada dos bondes elétricos fez aumentar o número de acidentes – inclusive com mortes – na cidade. E o mais impressionante: a velocidade dos primeiros bondes dificilmente ultrapassava os 20km/h. 20km/h! Éramos felizes e não sabíamos.
Eis então o X da questão: muitas novidades podem despertar sensibilidades que não desenvolvemos. Em uma das primeiras exibições de cinema dos irmão Lumiére, muitos da platéia saíram correndo da sala de exibição ao verem as imagens da chegada do trem na estação. Da mesma forma, um bonde a 20km/h em 1892 era uma velocidade muito alta!
https://www.youtube.com/watch?v=b9MoAQJFn_8
E sobre os tempos atuais nas grandes cidades brasileira eu digo: a bicicleta, essa senhora de 150 anos, é uma grande novidade no trânsito e em todos os demais espaços que foram construídos e pensados apenas para a circulação dos automóveis.
Uma cidade sensível à bicicleta: o caminho da alteridade
No último BiciRio – evento para discutir a mobilidade sobre bicicletas na cidade – o holandês Hans Nijland (especialista em políticas de transportes sustentáveis e mobilidade urbana do
Netherlands Environmental Assessment Agency – PBL) partilhou um pouco de sua experiência. No momento de perguntas da plateia, alguém perguntou a ele sobre como a Holanda trabalhava os conflitos por espaço no trânsito entre motoristas e ciclistas. Ele disse com tranquilidade:
É que na Holanda, a imensa maioria dos motoristas é também ciclista
É isso. Tão simples pra ele, tão lindo pra mim. Tão necessário para nossas cidades.
Somos insensíveis ao que desconhecemos, ao que não experimentamos. É difícil se colocar no lugar do outro quando não vivemos o que o outro vive. Daí nossa dificuldade com o outro, com o que não conhecemos, com o que é diferente.
Está na hora dos motoristas serem também ciclistas. Conhecerem as bicicletas de verdade. Segurar, subir em uma. Pedalar até o trabalho, a escola, a casa de um amigo. Sentir o vento no rosto, sentir a rua de uma forma diferente.
A bicicleta e a educação das sensibilidades
Esse é o caminho para a mudança. Pensar na educação das sensibilidades é o caminho para melhorar a vida nas cidades. Do ponto de vista da bicicleta, algumas instituições já perceberam o caminho. A principal delas, na minha opinião, é o Bike Anjo, que faz um dos mais belos trabalhos de educação das sensibilidades para a bicicleta nas cidades.
Além deles, as campanhas educativas que colocam os motoristas no lugar dos ciclistas também são fundamentais. Abaixo um exemplo feito com motoristas do ônibus da Grande Recife.
Inserção de conteúdos sobre a bicicleta nas provas de legislação de trânsito, redução da velocidade nas vias, zonas 30, traffic calming… tudo vale a pena. Diminuir (e zerar) as mortes no trânsito, economizar grana na área de saúde, tudo isso são boas consequências de algo maior: pessoas mais sensíveis ao espaço da cidade e as diversas formas de estar nela.