Renata Aiala conta sua experiência em pedalar na Massa Crítica de Roma que ocorreu em julho de 2015 e narra um pouco da história do movimento pro-bike na capital italiana.
Por Renata Aiala
Temos o hábito de comparar o Brasil com os Estados Unidos e com a Europa em diversos aspectos, dentre os quais a mobilidade urbana, assunto muito em voga ultimamente. Quem viaja pela Europa, com olhar atento, percebe claramente que não há uma homogeneidade quando se trata de mobilidade urbana. Experienciei diversidades, particularidades, níveis e nuanças na utilização da bicicleta e de outros meios de transporte. Aprendi que em Amsterdam (Holanda), em Copenhague (Dinamarca) e em Bremen (Alemanha), por exemplo, há um excelente sistema de transporte público e uma estrutura cicloviária invejável. Paris (França), por sua vez, tem investido cada vez mais em políticas públicas para incentivar o uso da bicicleta. Mas, engana-se quem pensa que todo o velho continente é assim.
Roma é uma cidade linda, com suas construções em tons de terracota e suas ruinas milenares que contam a história da nossa civilização. Mas o trânsito…! Ah! Faz jus ao estereótipo: é um caos. É visível que a prefeitura de Roma não tem colocado em prática políticas públicas significativas em favor da mobilidade urbana sustentável. Soube que há um grande número de acidentes fatais envolvendo pedestres, ciclistas e motociclistas anualmente. Não se percebe sinais de investimentos para melhorar a estrutura viária da cidade. Roma conta com aproximadamente 3 milhões de habitantes e possui apenas cerca de 200 km de ciclovias. Ao fazer uma pesquisa, aprendi que os italianos (66%) e os romanos (71%) usam diariamente o carro particular como meio de transporte para executar suas tarefas cotidianas. Na Itália em geral, apenas 13% da população usa o transporte público, enquanto que em Roma esse número sobe para 21%¹ (1 C.f. http://www.slideshare.net/svenjagolombek1/sustainable-mobility-and-the-role-of-cycling-rome-italy).
Apesar dessa estatística surpreendente e alarmante, o número de ciclistas tem aumentado consideravelmente em Roma. Nessa mesma pesquisa, aprendi que 73% dos entrevistados simpatizam pelo uso da bicicleta como meio de transporte e optariam pelo modal caso fosse mais seguro e houvesse uma melhor estrutura para acolhe-los. Percebi que, diferentemente de Amsterdam, Copenhague, Bremen e até mesmo de Paris, em Roma há ainda muito o que ser feito. Ao visitar Roma, tive a felicidade de conhecer muitos ciclistas engajados, que lutam por uma cidade mais humana e sustentável.
Segundo alguns participantes da Massa Crítica desde seus primórdios, Roma conta com uma contracultura forte e com grupos cada vez maiores propostos a lutar em prol da bicicleta. É sabido que, onde há mais opressão, o movimento de resistência e reivindicação é maior. Em Roma, há grupos como a Pedalata de la luna e a Critical Mass Rome (como eles chamam), que existe há aproximadamente doze anos. Como na maior parte do planeta, ela ocorre na última sexta-feira de cada mês. Paris é uma exceção, já que a Vélorution acontece no primeiro sábado de cada mês. Para aqueles que ainda não conhecem, a Massa Crítica é um evento cujos “principais objetivos são divulgar a bicicleta como um meio de transporte, criar condições favoráveis para o uso deste veículo e tornar mais ecológicos e sustentáveis os sistemas de transporte de pessoas, principalmente no meio urbano.”² [² https://pt.wikipedia.org/wiki/Massa_Cr%C3%ADtica_(evento)]
Tive o prazer de participar da Critical Mass em Roma no dia 31 de julho de 2015. Estava super ansiosa para conhecer de perto o evento. Como havia alugado uma bicicleta de um vizinho de uma amiga italiana alguns dias antes para rodar e explorar bem a cidade, seus pontos turísticos e suas ruelas, já estava preparada para pedalar na Massa. Eram 19 horas e o sol de verão ainda estava alto no céu. Quando chegamos na Piazza Vitorio – ponto de encontro da Critical Mass –muita gente já estava alí reunida. Cumprimentei os amigos que já conhecia e fui apresentada a outros tantos. O ambiente era bastante descontraído e alegre, talvez contagiado também pelo belo pôr-do-sol próprio do verão. As pessoas bebiam (cerveja gelada e água), visto que o calor estava demais, fumavam (cigarro e canabis) tranquilamente. Cada qual arrumava sua bandeira com dizeres engajados nas hastes acopladas às bikes. Através de uma poderosa caixa de som instalada em uma das bicicletas, ouvíamos excelentes músicas que animavam ainda mais a galera. Nos sentíamos felizes, nos abraçávamos, sorríamos e atualizávamos as novidades das férias de verão. Éramos cerca de 100 ciclistas na piazza.
Às 19:30hs fomos ao encontro de um outro grupo também engajado nas questões relativas à mobilidade – Pedalata de la luna –, que nos esperava na Piazza del Popolo. Ficamos ali mais alguns minutos. Estava extasiada com o enorme número de ciclistas – mais de 150 estavam nos esperando. Durante a pedalada, mais gente se juntou ao grupo. A diversidade de pessoas, bicicletas, estilos, idades me impressionava. Havia um número considerável de crianças, adolescentes e idosos. Alguns patinadores também nos acompanharam por um longo momento. Havia até cachorro acompanhando seu dono ciclista, e não era apenas um… Foi com grande satisfação que percebi que essa grande massa de ciclistas é heterogênea, composta por pessoas que convivem harmoniosamente, respeitando as diferenças. Ninguém se incomodava com modelo/valor da bicicleta do outro, com o que o outro estava vestindo, se o outro estava usando capacete ou não, respeitando mutuamente os estilos. Estávamos todos ali para um único maior e mais nobre: reivindicarmos juntos uma cidade mais humana e acolhedora.
Seguimos festejando e pedalando devagar pelas maravilhosas ruas de Roma. Com a noite, veio o frescor; estava muito agradável pedalar pela cidade. Mais ciclistas se juntaram a nós e acredito que chegamos a quase 400 pessoas reivindicando o direito de ir e vir de bicicleta em segurança. O grupo era muito animado e fazíamos muito barulho com gritos e palavras de ordem, apitos e músicas. Uma bicicleta com uma banda em cima nos encontrou no caminho. Ficamos alucinados com a performance dos animados músicos da Arts on bike³ (³ 3 https://www.facebook.com/Arts-On-Bike-968415853221761/timeline/).
A organização do grupo era incrível. Como toda Massa Crítica deve ser, não havia líderes, pois não há hierarquia. Nessa sexta-feira, houve um movimento natural daqueles que estavam na frente do grupo. Outra coisa que me impressionou foi a atitude positiva e bem humorada dos “bloqueadores” dos cruzamentos na rolhagem. Eles batiam papo com os motoristas, muitos deles curiosos em saber o que estava acontecendo nas ruas. Não houve nenhum incidente naquela noite, apenas alguns motoristas que insistiam em não respeitar o cortejo. Nesse caso, os ciclistas pediam com educação e gentileza que se esperasse um pouquinho: “approfittate di una piccola pausa per guardare la luna” como ouvi um ciclista dizer a um motorista (algo mais ou menos como: aproveite um instante para admirar a lua).
Nosso destino final era um squat em um bairro popular na periferia de Roma. Em linhas gerais, um squat é um imóvel abandonado pelo governo e ocupado pela população para diversos fins, algumas vezes residenciais, outras culturais. A Casetta Rossa é uma linda casa ao lado de um parque enorme. Ela estava abandonada pela prefeitura e então foi ocupada pelos moradores do bairro em 2002 e restaurada por eles para servir de centro cultural e de encontro da comunidade local. A casa possui uma cozinha comunitária e acontecem cursos, como de fotografia de de costura, há grupos de leitura para crianças, dentre várias outras atividades especialmente destinadas às famílias. Soube, através de amigos, que há uma batalha com a prefeitura que quer desocupar a casa e a associação dos moradores está na justiça para mantê-la, visto que estava abandonada e agora, restaurada, os moradores do bairro usufruem de todas as maravilhas que a casa pode oferecer.
Ficamos ali por horas. Bicicletas foram sendo estacionadas, prendidas, amontoadas e deixadas em todos os cantos! Havia uma mesa de ping-pong e uma de totó muito disputadas. O pessoal do som continuava a animar a festa. Nos foram oferecidos petiscos e a cerveja local foi vendida a preços módicos. O dinheiro arrecadado era destinado a pagar o advogado de defesa da associação dos moradores e também para a manutenção da casa. Foi passada uma caixinha para aqueles que quisessem e pudessem contribuir com algum valor…
Depois de beber, comer, dançar, conversar, conhecer gente nova, era hora de voltar para casa… Pequenos grupos se formaram e seguiram em segurança.
Após ter participado dessa Massa Crítica em Roma, dessa celebração, cheguei à conclusão de que a Europa é composta de realidades distintas e que precisamos parar de acreditar que ela é a fonte de todo o conhecimento e começar a ver que temos todos, europeus e brasileiros, muito o que aprender uns com os outros e um longo caminho a percorrer… e se assim for, que seja de bike, então! 😉
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