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Cicloturismo: de Málaga a Sagres

Cicloturismo: de Málaga a Sagres
Praia de Doñana. Foto: acervo pessoal Flavia Luchetti

Por Flávia Luchetti

Há dez anos morando na Espanha, eu já tinha sido irremediavelmente contaminada pelo vírus do cicloturismo. Comecei “engatinhando” em pequenos trajetos pela cidade,  e tempos depois, já na companhia de Miguel Ángel, meu querido fiel bike-parceiro, incentivador, mecânico e intrépido aventureiro espanhol, se transformaram em explorações maiores.

No país de “La Vuelta” a tradição ciclística é muito forte. Diariamente pode-se  avistar pelotões de ciclistas pelas estradas treinando ou simplesmente desfrutando de passeios pelo campo. A rede de caminhos cicláveis, vias-verdes, ciclo-faixas é bastante extensa e é impossível ficar indiferente a elas. Corria o mês de junho de 2012 e Miguel Ángel e eu, cansados de uma entediante rotina laboral, decidimos por em prática “a operação Leão da Montanha”:  Saída de bicicleta pela esquerdaaa !!

De Málaga a Sagres

E foi assim, sem muito planejamento que partimos de Málaga com a intensão de levar nossas endorfinas para passear até Lisboa. Este seria nosso segundo bike-ataque ao país vizinho. Bordearíamos a costa andaluza até conectar com a Ecovia Litoral no Algarve, para depois seguir pela costa vicentina até a capital lusa. Para esta  empreitada contávamos com um orçamento minúsculo, e uma vontade maiúscula de viajar e desconectar. E lá fomos nós…

Estávamos há uns dez dias na estrada, nossos odômetros já colecionavam uns 390km pedalados. Quando numa linda tarde ensolarada aportamos em Cádiz. A “tacita de plata” é uma das mais antigas e encantadoras cidades europeias, e talvez por isso tenha sido  a escolhida por Cristóvão Colombo como ponto de partida em sua segunda viagem ao Novo Mundo.

Chegamos em meio as festividades de Corpus Christi. A cidade estava radiante, vestida com  seus melhores trajes de gala. Flamulas enormes enfeitavam os balcões, as “calles” devidamente cobertas pelos tradicionais tapetes florais , crianças vestidas de branco corriam de lá prá cá,   procissões  de supetão surgiam vindas de becos menos esperados e um delicioso  aroma de incenso e alecrim impregnavam o ar… sublime! Abduzidos pela magia e beleza da festa,  nos esquecemos de passar pela capitania dos portos e verificar o horário das marés, para a travessia de 33km que faríamos pela praia deserta no dia seguinte.  Estávamos tão felizes comendo “pescaíto frito” ouvindo as cantorias na Plaza de San Juan de Dios.. que simplesmente relaxamos e aproveitamos.

Málaga a Sagres
Cidade de Rota Foto: acervo pessoal Flavia Luchetti
Málaga a Sagres
Saída de Cadiz. Foto: acervo pessoal Flavia Luchetti

 Domingo -10 de junho de 2012.

Levantamos cedo. Tomamos café. A etapa do dia se apresentava como uma barbarda!  Eram 80 e poucos quilômetros basicamente em terreno plano. Prá fazer com o pé nas costas. Só nos faltava conferir o horário da tábua de marés…

Cádiz está localizada numa península. E para sair da cidade, teríamos que desfilar novamente  pelos 5km da longa avenida até alcançarmos a estrada. Mas no meio do caminho tinha uma ponte levadiça, tinha uma ponte levadiça no meio do caminho. Uma enorme e bonita obra de engenharia, dessas que abrem e fecham, e que  ciclistas e caminhantes  estão  terminantemente proibidos de trafegar. E agora, o que fazer?

O GPS se mantinha mudo, como se não fosse com ele. Demos umas olhadelas no mapa e umas “perguntadelas” aos transeuntes… e descobrimos que se realmente quiséssemos chegar ao outro lado da ponte pedalando, teríamos que dar uma volta de uns 30km. Dios mio! Alternativa eliminada.

Plano B, voltar ao centro da cidade, e lá no porto, embarcar no primeiro ferry com destino a Puerto de Santa Maria do outro lado da baia e dali finalmente seguir nosso destino pela ciclovia. E lá fomos nós pela longa avenida outra vez… Quase chegando ao porto, vimos o ferry se distanciando lentamente do cais.. Oh, não podia ser verdade! Pare, espere por nós! Mas já era tarde… Resignados fomos a bilheteria comprar os tickets para o próximo ferry, quando um sonoro

– “Solamente por la tarde”! retumbou em nossos ouvidos!!

– O quê?? Como  assim só a tarde? Temos que cruzar a baia agora!

-Não há nada a fazer. Agora só de ônibus que sai dentro de uma hora.

Ufa, estávamos salvos ….

Uma hora depois, com as bikes no bagageiro, nos sentíamos satisfeitos,  avistando a Puente Carranza desta vez pela janelinha do ônibus… que nem lembramos da tábua de marés.  O trajeto foi rápido.  Depois de quarenta minutos desembarcávamos  em Puerto de Santa Maria. Montamos nas bikes, e olé! “libres otra vez”  para seguirmos viagem pelo “Caminho Natural de Rota” e “via verde Costa Ballena” – duas ciclovias habilitadas sobre traçado de uma antiga ferrovia  até Sanlucar de Barrameda.

Era por volta do meio dia,  com um sol implacavelmente a pino, quando chegamos em Sanlucar exaustos e com muita sede. O comércio fechado, decidimos atracar no primeiro bar aberto. Oba! Este tem sombra para as bikes e promoção para famintos. Nos serviram umas típicas “tortitas de camarón” de lamber os dedos e dois copos de vinho como cortesia da casa.. Coisas como estas não tem preço, não é?

O bar foi ficando animado e cheio de gente. A TV foi ligada e lá estavam eles Rafa Nadal e Novak Djokovic  na final do Roland Garros. Vi um sorrisão estampado na cara do Miguel. É claro que ele queria ficar prá ver o jogo. Não demorou muito, já tínhamos tomados uns vinhozinhos a mais e feito “um milhão de amigos” e Nadal já estava mordendo o seu sétimo troféu do Roland Garros. Caramba! Passou rápido! Eram quase as 4 da tarde e ainda tínhamos que cruzar pela praia o Parque de Doñana. “Espabila”!!! Os “amigos” insistiram para que ficássemos ali ..  mas nós tínhamos que seguir.

-Alguém sabe como está a maré??

-Tranquilos, ela só vai subir mais a noite!! ( quem era mesmo esse aí que falou??)

Movidos a “vino manzanilla” e muita paixão por aventuras,  cruzamos o Guadalquivir em balsa e já estávamos na praia do outro lado, prontinhos para pedalar.

O Parque de Doñana é considerado uma das áreas naturais protegidas mais importantes da Europa. Ponto de parada de muitas aves migratórias que seguem para o continente africano e refugio de outras tantas espécies em extinção. Veículos lá dentro, só os autorizados. Os visitantes podem circular a pé e em bicicleta ( em zonas autorizadas).

Málaga a Sagres
Praia de Doñana. Foto: acervo pessoal Flavia Luchetti

Nós tínhamos pela frente os famosos 35km de praia deserta antes de chegar a Matalascañas, onde pretendíamos acampar.

E foi dada a largada… Opa! aquele 4×4 do guarda-parque vem na nossa direção? Senta que lá vem história –  Aonde  pretendíamos ir aquela hora e com a maré subindo?? Que era proibido acampara na zona do parque… blá blá blá  que éramos dois irresponsáveis e mais blá blá blá.. Nós (visivelmente alegrinhos) argumentamos que devido nossa longa experiência cicloturistica, não víamos nenhum problema e nos responsabilizávamos pelas consequências neste  trajeto (gulp) afinal eram só 35 km pela praia. Em 3 horas e meia, ainda com luz, calculamos que chegaríamos em nosso destino. Ele deu uma risadinha e nos deixou seguir , mas perdemos preciosos minutos naquele sermão da montanha- praiano!

Os primeiros 10km em areia firme foram tranquilos , mesmo com o vento contra (sim, até ele). Algumas pedaladas mais e a areia foi ficando cada vez mais fofa… e faltando ainda uns 15km, com as bicis carregadas, já não  dava mais.. Só nos restava, por o orgulho de lado,  desmontar e empurrar. O horário de verão estava em vigor, e pelo menos o Sol seria nossa companhia até mais tarde, o mesmo não podíamos dizer da água, que já estava acabando!

Remem, remem, empurra, empurra… já falta menos! Foi escurecendo e gritamos de alegria quando vimos  as luzes da cidade no horizonte.. yupiii! Elas pareciam tão pertinho… seria uma miragem?? Começou a escurecer, e nossas maravilhosas cateyes estavam com pouca bateria (há então não foi só a tábua de marés que faltou ver…)

Era por volta das 11 da noite quando chegamos a Matalascañas acabadaços e completamente empanados de areia. Não tínhamos a mais mínima vontade de armar a barraca. Salvos por Juan na praça, chegamos ao Hostel Victoria (claro!) para um delicioso banho e uma reconfortante noite de sono.

Neste dia sentimos na pele, como o orgulho e o excesso de confiança,  pode trabalhar contra. Claro que uma aventura sempre é bem vinda, mas as vezes não vale por em  risco  integridade física e psicológica… e não digo isso pelo fato da travessia a noite… mas pelas doses de  vinho a mais tomados antes dela.

Portanto hoje temos  gravado nos alforjes de nossos corações – Se beber não pedale… e se pedalar,  beba água.. e a vontade… Depois dali  “deu prá chegar de bicicleta” no Cabo de São Vicente em Sagres pela Ciclovia Litoral. Totalmente recomendável para amantes das ciclo-viagens!

Málaga a Sagres
Chegada em Cabo de São Vicente – Sagres. Foto: acervo pessoal Flavia Luchetti
Málaga a Sagres
Marco Zero da ciclovia do Litoral – Algarve. Foto: acervo pessoal Flavia Luchetti

Fin!!

[Nota do blog:] se você vai pedalar pelas cidades desse roteiro, pode consultar campings, hostels, pousadas e hotéis nos links abaixo:

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