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Pedalando pela Estrada Real: de Ouro Preto a Barão de Cocais

Pedalando pela Estrada Real: de Ouro Preto a Barão de Cocais
Pedalando pela Estrada Real

Por Javert Denilson

Belo Horizonte, 21 de abril de 2005. Quinta-feira, 05h45min da manhã. Eu já estava na entrada da rodoviária de Belo Horizonte esperando pelo colega João Batista. Havíamos combinado o encontro naquele local. João, com sua animação de sempre, rapidamente chegou e resolvemos ir direto para a plataforma de embarque. Luiz Carlos Oliveira, o Lucarol, já estava com sua bike à nossa espera. Descemos as escadas e embarcamos no ônibus da viação Pássaro Verde, às 06 horas da manhã, rumo a Mariana.

Minha “magrela” e a do João foram embarcadas na quarta-feira com destino à garagem da empresa Pássaro Verde em Ouro Preto. João Batista levou uma bolsa enorme em sua garupeira. Digo “enorme” porque minha bolsinha parecia tão diminuta, se comparada com a dele. O Lucarol levou dois alforjes um pendurado em cada lado de sua garupeira. Muito interessante. E eu com minha bolsinha tipo “carregar marmita” e uma mochila nas costas. Nossas passagens estavam marcadas para Mariana, mas descemos em Ouro Preto como combinado.

Pedalando pela Estrada Real: pedal Ouro Preto – Mariana

Assim feito, pegamos nossas bikes e montamos. O João chama sua bicicleta de “coralina”, pois parece uma cobra coral com as cores vermelha, preta e branca. Minha bicicleta e a do Lucarol ainda não foram batizadas e por enquanto nós a chamamos de “magrelas”. Seguimos em direção à Mariana. São 11 quilômetros de descida forte. E foram apenas alguns minutos. Chegando a Mariana pude perceber um aroma diferente: nada de poluição. O ar fresco e gostoso enchia meus pulmões de satisfação.

Em Mariana fomos parar na casa de umas primas do João Batista, a dona Cotinha e a Aparecida. Depois de uma breve conversa, seguimos para a Igreja da Sé para contemplarmos o órgão da Sé. O instrumento foi construído no século XVIII, em Hamburgo, na Alemanha. Um enorme órgão que eu nunca tinha visto antes em minha vida. Depois fomos para a casa do famoso artista plástico Zizi Sapateiro. Ele tem esta alcunha porque era mesmo um sapateiro que, por sorte do destino, estrangeiros se interessaram por seu trabalho como pintor e espalharam sua arte pelo mundo afora. Ele tem trabalhos em todas as partes do planeta. Reportagens em jornais, revistas e até participações na televisão como ator e figurante em minisséries globais. Zizi Sapateiro teve a bondade de nos mostrar seus quadros e explanar sua vida extensa em poucos minutos.

Em seguida fomos para casa de outros parentes do João Batista: tia Cici e tio Filinho. E lá fomos abençoados com um delicioso pudim de milho verde e um saboroso mingau de milho verde. Uma maravilha. Como não podíamos ficar por muito tempo devido ao horário que estabelecemos, partimos rumo a Bento Rodrigues.

De Mariana a Bento Rodrigues

Seguimos pela rodovia até a entrada para Bento Rodrigues. Saímos do asfalto e pegamos estrada de terra. Aliás, pegamos a famosa Estrada Real. E lá fomos nós, os três “bikessauros de BH”, orgulho dos “bikessauros de Varginha” Luizão e Ronaldo, desbravando e admirando a famosa estrada. E já no início não só o ar fresco nos regozijava como também o cheiro de capim e o cheiro de terra e poeira. Tínhamos que tomar cuidado para não passarmos dentro de algum buraco oculto pela poeira, que, e em alguns trechos, mais se pareciam “talco”. João Batista se preocupou em nos mostrar as paisagens identificando as plantas, flores, como assa-peixe, bromélias, samambaias, eucaliptos entre outros. Um “biólogo” e tanto em nossa aventura, já que eu não entendo e não conheço o nome de planta alguma. O Lucarol também reconhecia algumas plantas de nossa vasta flora brasileira. Na Estrada Real há diferentes tipos de flores e dos mais variados tons. Há também muitas aranhas. Aranhas enormes e assustadoras, mas sossegadas em suas teias.

Depois de passarmos por uma ponte de madeira que cruza um rio, chegamos a Bento Rodrigues mortos de sede. Entramos num barzinho que parecia uma cabana e tomamos um refrigerante bem gelado. Continuamos nossa viagem. João Batista teve uma cãibra e em alguns trechos de subida forte teve que empurrar sua “coralina”. Nossas garrafinhas de água já haviam se esgotado e estávamos sedentos de sede, de novo. E como num passe de mágica encontramos uma nascente com água cristalina. Foi a nossa salvação, principalmente porque eu havia levado apenas uma garrafinha.

Saciada a sede e com as reservas de água em ordem seguimos pedalando. E naquele silêncio escutamos um ruído nada agradável: o som de um caminhão vindo a toda velocidade. E o resultado não poderia ser diferente: tomamos nosso primeiro “banho de poeira”. E foi tão intenso que meus óculos de grau precisaram ser limpos. Minha bunda começou a latejar ainda em Bento Rodrigues.

De Bento Rodrigues a Santa Rita Durão

Continuamos a viagem. Chegamos a Santa Rita Durão já com o céu escurecido pela noite. Meus pés e meus pulsos estavam doloridos. E já fomos direto para a pousada que fica em frente à Igreja Nossa Senhora de Nazaré. João Batista foi nosso “relações públicas” à procura de informações e contatos com as pessoas dos lugarejos. A pousada de Dona Cota não é de luxo. Os quartos são individuais e medem, mais ou menos, dois por dois metros, com uma cama, um banquinho e uma janela minúscula. O ambiente estava impregnado pela fumaça dos fogões a lenha que ficam do lado de fora da pousada.

Comecei a esboçar este relatório quando chegamos a Santa Rita, mais precisamente no quarto da pousada de dona Cota. Meu cotovelo direito estava doendo, meu ombro esquerdo estava me matando, além de outras dores localizadas. João e Lucarol dormiam em seus quartos enquanto eu escrevia na calada da noite. Uma tênue luz passava pela janela e iluminava precariamente o quarto. Senti-me como se estivesse numa cadeia, numa cela pequena onde um detento cumpre pena. Com minha caneta em um papel escrevendo memórias aos que estão em liberdade. Voltei à realidade e fiquei feliz. Eu estava no quarto da pousada de dona Cota. E um “bikessauro” como eu, amante da aventura não podia ficar reclamando de detalhes. Não fui pedalar para ficar hospedado em hotel cinco estrelas. E nem posso.

Nunca minha magrela viajara tanto. Nunca estivera tão suja e empoeirada. Ela deve estar sentindo saudades das ruas asfaltadas de Belo Horizonte. Pensei que meu joelho direito ia me dar trabalho, mas não. Ele sobreviveu, pelo menos até agora.

Na manhã de sexta-feira, além dos pés doendo e dos pulsos ardendo, minhas pernas ficaram cheias de feridas. E não era só uma pequena erupção, mas várias feridas como se eu tivesse sido cortado com um canivete. Fiquei assustado. Pensei que me machucara em algum lugar, porém me lembro de que não havia levado tombo ou passado por entre aqueles capins afiados. O colega Lucarol esclareceu minha dúvida: picadas de borrachudos. Ele e João Batista também estavam com suas pernas cheias de feridas. Passamos um pouco de pomada Fenergan para aliviar as coceiras. Incrível que só me picaram nas pernas e deixaram meu rosto intato. Parece que os borrachudos gostam de sangue das pernas. Sangue quente das nossas pernas de ciclistas. Lucarol levou um repelente que eu usei com muito bom gosto.

Tiramos algumas fotos em frente à Igreja Nossa Senhora de Nazaré e da montanha que fica logo atrás dela. E pé na estrada, aliás, pedal na Estrada Real.

Pedalando pela Estrada Real
Pedalando pela Estrada Real

De Santa Rita a Catas Altas

Às 07h30min da manhã já estávamos pegando um pouco de barro em nossos pneus, pois havia chovido de madrugada. E no caminho havia um cachorro. Um cachorro no meio do caminho. E justamente perto do primeiro “marco” da Estrada Real. O animal começou a nos seguir. Nas partes retas ele distanciava de nós. Mas nas subidas ele nos alcançava. Ficou tão íntimo de nós que João Batista o apelidou de “raposinha”, porque se parecia mesmo com uma raposa (alongada e marrom) e era fêmea. Nós parávamos várias vezes para curtir a natureza, deslumbrar o visual verde e azulado da paisagem, observar através do binóculo cachoeiras distantes, esgotar a água de nossas garrafinhas e sendo observados pela “raposinha”.

O animal nos seguiu até Catas Altas. Uma cidade belíssima. Calma e tranqüila. Fomos para a Capela de Santa Quitéria, que fica no alto de uma colina e tiramos muitas fotos, inclusive com a “raposinha”. Então fomos em direção ao centro da cidade. Acho que “raposinha” ficou lá perto da igreja, já que não a vimos mais. Foi nossa companheira por mais ou menos uns cinco quilômetros. Tenho a impressão de que ela mora perto da Capela e ficou por lá.

Chegamos ao centro de Catas Altas por volta das 12 horas. Fomos para um restaurante para tomarmos uma cerveja e comermos lingüiça e mandioca. Afinal de contas ciclista também se delicia com levedo, gordura e raízes, ora bolas! João Batista se encantou com duas senhoras que estavam na janela de um casarão antigo. Uma das senhoras se chama Elvira e a outra… bem, ela que me perdoe, mas não me lembro de seu nome. Ele as fotografou depois de muita relutância as duas senhoras ficaram envergonhadas quando o João pediu para fotografá-las. Lembrei a tradição de certos povos que apregoa o fato de não se deixarem fotografar temendo que suas almas sejam apreendidas pela máquina fotográfica.

De Catas Altas à Santa Bárbara

Seguindo a Estrada Real chegamos a Santa Bárbara às 17 horas. Logo na entrada da cidade encontramos réplica de um antigo casarão num formato parecido com uma “casa de bonecas”. Ficamos numa pousada no Posto Ipiranga. À noite saímos para jantar e encontramos com o Sr. Ronaldo que trabalha na Copasa e sua esposa, dona Raquel. Ambos nos viram em Catas Altas pedalando em “fila indiana” pela histórica cidade. Eles estavam hospedados no famoso Hotel Quadrado. Ficamos conversando a respeito do cicloturismo e o Sr. Ronaldo nos indicou um restaurante para jantarmos. Era o restaurante do Vicente e da Terezinha. Ficamos sabendo que a réplica do casarão pertencia à família deles e que foram indenizados para construção da avenida central da cidade. E no restaurante do Vicente encontrei-me com o Sr. José Geraldo que é de Conceição do Mato Dentro. Disse a ele que sou bisneto de Janjão Rodrigues, o maestro da cidade, e logo se prontificou a sentar em nossa mesa para aquele bate-papo saudável. Trocamos nossos telefones para futuros contatos e visitas. Foi uma noite agradável.

De Santa Bárbara à Barão de Cocais

Saímos bem cedo de Santa Bárbara rumo a Barão de Cocais aonde chegamos às 11h30min. Seguimos para a pousada do Posto BR. Às 14 horas deixamos nossas bicicletas e fomos de ônibus para o distrito de Cocais. Descemos no trevo e seguimos numa caminhada de quatro quilômetros em direção à cachoeira da Pedra Pintada. Atravessamos Cocais e encaramos estrada de terra. A vegetação se parece com o sertão. Dava impressão de que a qualquer minuto Lampião e seu bando surgiriam de dentro daqueles arbustos com suas armas e apetrechos de cangaceiros. Esperava que, se isto ocorresse, com ele também estivesse Maria Bonita, aquela sim, mulé macho sim sinhô!

Chegando à entrada de acesso à cachoeira, mais um quilômetro ladeira abaixo. Descemos correndo, pois chegamos às 16h30min, que é um horário de saída dos visitantes. O Sr. Oliveira, guardião da cachoeira, liberou nossa descida, após ter reparado nosso esforço em chegar ao local. Mas ele nos alertou que a descida era de um quilômetro. João ficou na entrada, Lucarol e eu arriscamos numa descida desenfreada.

E foi uma descida suicida. E quanto mais avançávamos, mais ficava íngreme. Eu levei um escorregão e um tombo, deixei a máquina fotográfica do João cair duas vezes. Ainda bem que não quebrou. Lucarol tem um preparo físico invejável, apesar da idade. Sua pedalada é forte e vigorosa. Seu caminhar é ritmado. Desceu com tranqüilidade a escarpa da montanha rumo à cachoeira.

E quando chegamos o visual deslumbrante nos deixou boquiabertos. Eu me encantei com a beleza e com o perigo. Havia pedras. Muitas pedras. Pedras enormes e escorregadias. E eu descobri que tenho trauma deste tipo de pedra. Tive que quase engatinhar para poder chegar à água. O Lucarol encarou o frio e entrou na água. Eu só molhei as canelas e lavei os braços. O sol já tinha ido embora e fazia um frio… E após tirarmos algumas fotos encaramos a subida de volta. Foi aí que aconteceu o que temia nas pedaladas: meu joelho direito começou a doer (ele sempre dói quando faço muito esforço físico). E sem contar que meu fôlego se esgotou. Subi bufando como um boi cansado.

Chegamos à entrada e fui logo pedindo um refrigerante bem gelado. Refeitas as energias fomos embora. Um cachorro que estava passeando pelo local resolveu nos seguir como fez a “raposinha”. O cachorro era branco e tinha um olho preto e o outro com tom branco azulado. O olho parecia uma pedra de porcelana e foi assim que Lucarol o apelidou: “porcelana”.
Enquanto João Batista e Lucarol caminhavam e conversavam a respeito de mais aventuras, caminhadas, ciclismo e pescaria, eu admirava a natureza. Aos poucos o dia ia ficando cada vez mais azulado e escuro.

À noite o tom das árvores era mais sombrio e lembrei-me da “Lenda do Cavaleiro sem cabeça” (aquela figura sinistra que saía do meio dos arbustos com uma foice). Aquelas árvores sendo balançadas pelo vento, aquele silêncio, mas novamente voltei à realidade e lembrei de que era apenas uma lenda. Mas a lua não deixou os três bikessauros no escuro. Com seu brilho iluminou toda a estrada, nos acompanhando até o centro de Cocais. “Porcelana” nos acompanhou durante os quatro quilômetros até o trevo onde embarcamos no ônibus de volta a Barão de Cocais.

À noite, na hora de dormir, meu ombro, meu cotovelo, meus pulsos melhoraram, mas meu joelho direito e a planta de meus pés estavam desgastadas.
No domingo de manhã fomos para rodoviária, compramos nossas passagens, embarcamos nossas bicicletas no bagageiro do ônibus e voltamos para Belo Horizonte.

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Hospedagem na Estrada Real

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