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A dimensão poética da bicicleta

A dimensão poética da bicicleta
Bicicleta de Adoniran Barbosa

Por Ernesto Stock

Há alguns dias atrás eu estava em um aniversário do filho de alguns amigos de longa data. Era um aniversário de dois anos. A amizade pelo menos quinze. Fazia um mês que tinha voltado de uma viagem de bicicleta até o Chile e todo mundo me cercava de perguntas e curiosidades. Em um dos poucos momentos em que não falava sobre a pedalada, outro assunto que me apaixona entrou em pauta: o samba.

Júnior, outro amigo decano, acabara de ler uma biografia de João Rubinato, vulgo Adoniran Barbosa. Entre as muitas histórias deliciosas do grande personagem do samba paulista, uma obviamente me chamou a atenção. Adoniran tinha como passatempo confeccionar miniaturas e tinha grande paixão pelas de bicicletas, que utilizava para presentear e homenagear as pessoas que admirava, como uma espécie de condecoração ou prêmio.

Bicicleta de Adoniran Barbosa
Bicicleta de Adoniran Barbosa

No natal passado, resolvi contrariar a infeliz idéia da minha irmã e do pai do meu sobrinho de três anos, Pedro, e presenteá-lo com uma bicicleta aro doze em oposição a um tablete que eles haviam comprado.  Como tinha apostado, a bobagem tecnológica ficou jogada em um canto e o meu presente fez o maior sucesso. Sempre que posso vou com ele até uma praça vizinha e pedalamos juntos. Um dia, um desafio de chegar até um grafite no final da rua. Quero descobrir lugares novos, me disse. Fiquei quieto e emocionado. Também descobria outro lugar em mim.

Ficou bastante fácil de encontrar o significado dos pequenos presentes do sambista. A dimensão do sonho, a liberdade e a imensidão de caminhos que surgem quando ganhamos nossa primeira bicicleta. Permita-se, viaje e seja feliz, parecia dizer de modo explícito a miniatura gigante.

Lembrei da minha história. Uma BMX Pantera e uma aula sobre como me equilibrar em duas rodas. Era domingo e fui com o meu pai para alguma rua de paralelepípedo das docas do porto de Santos. A bicicleta no porta-malas do carro, prateada e com alguns enfeites de espuma escura bem característica da década de oitenta. Esperei muito por aquele presente. Suspense, medo e excitação. Parecia um desafio sem igual. Lembro do carro parando, do meu pai descarregando a bicicleta e das primeiras instruções. Não tinha perigo, mas ele havia me vestido com capacete, joelheira, cotoveleira e demais acessórios que pareceriam exagerados para qualquer pessoa que não fosse o pai daquela criança.  Algumas tentativas e algum tempo depois, lembro do sorriso emocionado do meu pai quando me equilibrei por alguns metros. Inesquecível.  Era o mesmo sorriso que imaginava que Pedro reconheceria em meu rosto alguns anos depois.

Alguns anos mais tarde, depois da morte do meu pai, mudamos de Santos para Mogi das Cruzes. Graças aquele dia no porto, eu já sabia andar sozinho. Tinha uma Caloi Cruiser vermelha e, sempre que precisava, carregava minha irmã no quadro até uma escola onde minha mãe dava aula. Algumas vezes, com ela na bagagem, percorria alguns quilômetros de estrada de terra até uma pequena vila próxima, Sabaúna. Estrada do Procópio. Ficamos muito amigos. Tinha certeza que ela nunca cairia da bicicleta. Ela tinha oito anos e eu a protegia como se tivesse capacetes e joelheiras. Quando comecei a viajar de bicicleta, minha irmã se lembrava da história e constatava que o futuro era inevitável.

Na mesma estrada, em outro momento, guiava minha irmã e meus dois primos, todos mais novos do que meus avançados doze anos. Cada qual em sua bicicleta e a cestinha das “Cecis/ Brisas cor de rosa” das meninas devidamente abastecidas com os suprimentos necessários para enfrentar 15 longos quilômetros de terra. Descobríamos um mundo incrível quando uma chuva forte nos apanhou de surpresa. Procuramos abrigo e encontramos uma carcaça de Kombi jogada no meio do mato. Amontoamos-nos na sucata, tão excitados pela aventura que o medo e o perigo nunca fora uma questão. Para nossa surpresa, em poucos segundos fomos expulsos do nosso alojamento por algumas dezenas de marimbondos raivosos que protegiam sua casa. Retomamos as bicicletas e pedalamos de volta pra casa, encharcados e repletos de lama. Só paramos de rir quando fomos censurados pela minha mãe desesperada nos esperando no portão.

Eu agora, sem descontar os exageros e as emoções envolvidas, também tinha certeza do inevitável destino do Pedro, que ganharia o Tour de France mais vezes que Lance Armstrong. Limpo. Percorreria o mundo muitas vezes e que pedalaríamos juntos pela cordilheira. Quase desabei quando um dia ele se negou a entrar no carro e disse que preferia voltar para casa de bicicleta.

Enfim, muito tem se falado da bicicleta e da sua enorme importância como alternativa ao caos urbano e o progresso desenvolvimentista de mau gosto. O impacto econômico e social do uso da bicicleta frente a uma sociedade cada vez mais individualista e consumista. Sustentabilidade e outros temas importantes que colocam a bicicleta no centro de uma discussão muito mais complexa sobre os caminhos do nosso país e do mundo.

Dentro destes temas, acho de fundamental importância retomar a dimensão poética da bicicleta do seu modo mais amplo, em contraposição a uma infância excessivamente solitária e tecnológica. O vento na cara de verdade. A razão de um mundo comicamente sério frente á beleza repleta de possibilidades de um verso. A vital importância do movimento para o equilíbrio.  A “ludicidade”, característica da infância, carece de cultivo e seu desenvolvimento é de vital importância na criação de um indivíduo conectado com o meio ambiente e capaz de reconhecer e interpretar o mundo a partir de um ponto de vista mais humano. O escritor britânico H. G. Wells disse que sempre que via um adulto sobre uma bicicleta, retomava a esperança na raça humana.

Entender a bicicleta como um instrumento eficaz de sensibilização e estimular desde a infância seu uso, seja como brinquedo ou meio de transporte, é, sobretudo, uma atitude política.   

Lembrando por aqui, em uma espécie de recaída-aliteração nada poética, que a citada Estrada do Procópio, onde pedalava com a minha irmã há mais de duas décadas, vem sendo pouco a pouco destruída por conta de uma especulação imobiliária criminosa. Rios canalizados, condomínios murados e entulhos enfeiam a mais tradicional trilha da região de Mogi das Cruzes e já não raro tratores atrapalham a passagem dos ciclistas.  Em breve pretendo levar o Pedro para pedalar por lá. Espero que ainda dê tempo. Que ele possa vivenciar por lá um pouco da experiência que construí com sua mãe.  E quem sabe, juntos, lutaremos por esta estrada-memória.

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3 COMMENTS

  1. Amei seu texto, um mapa delicado que me levou a também descobrir outros lugares em mim. Muito obrigada. (Menino de sorte, o seu sobrinho. Menina de sorte, eu).

  2. Sempre me lembro também do primeiro dia que consegui me livrar das rodinhas!!! acho que foi ali a primeira vez que senti o gostinho da liberdade e a sensação do vento na cara. Que me persegue até hoje!!!Acho um crime a infancia crianças que não terão essa lembrança… Lindo seu texto. bjo

  3. Amei o texto! Parabéns um texto apaixonado que me fez voltar ao meu tempo de bicicleta da minha ceci e cross da infância aos 20 e poucos e tái voltandooo … e faz tanto tempo que não curto minha bicicleta, ou melhor uso o carro por trabalho e tem hs que não saio dele, mas estou nessa busca de qualidade de vida de sentir esse ventinho no rosto… que vou pegar a minha bike na vila…voltando a pedalarrr!! Obrigada!!

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