Por Marcos Mauro Rodrigues
Tudo pronto? Capacete? Pneus cheios?
Abro o portão e me aboleto na minha bicicleta de passeio, que até agora tem aguentado galhardamente as minhas barbeiragens. Olho pro céu. Nublado. Levo a capinha de chuva? Bobagem, vou só até a esquina, comprar cigarros.
Do alto da minha bike, olho em volta. As paredes estão pichadas com algumas garatujas incompreensíveis. O que essa gente quer dizer com isso? Por que essa necessidade de marcar território, sujando as paredes dos outros? Podia ser, pelo menos uns desenhos, uma poesia, sei lá… O chão está relativamente limpo (acabou de cair uma chuvinha), mas já dá pra ver um papelzinho aqui, outro acolá. Falta de lixeiras? Descaso? Problema de educação? Vai saber…
Tento as primeiras pedaladas e o pneu da bicicleta atropela uma carreira de formigas, que estão construindo alguma coisa em algum lugar. Se elas usassem bikes, poderiam fazer tudo mais rápido hehe. O cachorro do vizinho late, porque não pode ver algo em movimento, até pra espantar a solidão daquele quintal em que está preso dia e noite. Se eu pudesse, punha uma coleira no bicho e passeava com ele. Maldade do dono? Acho que é mais egoísmo..
Opa, um pinguinho de chuva… não, o pingo caiu da calha de casa. Caiu no meu joelho e passo a mão no joelho para espantar aquele pingo importuno. Joelho interessante, o meu. Ainda funciona, não me dá problemas e só guarda algumas cicatrizes de certos tombos e escorregões. Vai durar mais um tempinho.
Avanço com a bike até a calçada. Olho para a esquerda. Vem vindo uma mulher com uma criança pela mão. Eu sorrio, amistoso (“não sou nenhum perigo, minha senhora”). Ela sorri, em retribuição (“me deixa passar, porque eu estou com uma criança”). Todos aparentando alegria e civilidade, neste breve momento. Percebe-se, pelas vestes, que ela é pobre, que a criança é humilde, que a vida não tem sido muito favorável. Mas, sei lá, ela pode ser uma professora com pós-graduação em Física Nuclear. Nunca se sabe.
Olho para a direita. Um homem de terno se apressa para passar, como se eu fosse avançar em cima dele. O olhar é mais de desafio (“eu tenho direito”) e o meu rosto estampa o mesmo sorriso idiota (“não sou nenhum perigo, meu amigo”). Ela passa, ele passa e finalmente eu passarinho (parafraseando Mario Quintana).
Avanço um pouco mais, em direção à rua. As casas respiram em suspense, olhando para o intruso. São casas simples, com as portas dando pra rua, sem grandes pretensões, pintadas com aquelas cores meio esmaecidas, meio tristes, procurando não chamar a atenção de ninguém (cobradores, assaltantes, mendigos, vendedores, Testemunhas de Jeová e o que mais vier).
A rua em que vou andar com a minha bicicleta até a esquina é de mão única. Mas por via das dúvidas olho para os dois lados. Láááá no finzinho um ônibus aparece, roncando ameaçadoramente. Aguardo, porque não nasci ontem. Ele passa, grunhindo, trepidando, esfumaçando. O motorista está com pressa e não sou eu que irá dizer a ele para ir um pouco mais devagar.
Tudo livre. A bike entra na rua asfaltada e roda macio (ah, a liberdade de uma bicicleta!), mas tenho que prestar atenção porque o primeiro buraco já chega para tentar me derrubar. Desvio rápido, mas caio no outro, que veio logo em seguida. Quase caio, mas não. Acerto o prumo e vou em frente.
O bar da esquina está aberto, com meu vício à venda, espero. Paro a bicicleta e sorrio para o dono do bar. É um bar simples, com jeitão de bar de periferia. O dono do bar sorri (lembro de Tabacaria, poesia do Fernando Pessoa). Nós nos reconhecemos, naquele instante, como seres humanos, trabalhadores, conhecidos mas não amigos, homens já com as marcas que a vida impõe, um certo sofrimento, uma incerta alegria. O bar tem seu encanto, suas coxinhas e garrafas coloridas. Alguns desocupados (quem sou eu pra julgar que está lá?) tomam suas cervejinhas, fumam seus cigarros, falam de mulheres, futebol, aquelas coisas. Homem é um bicho meio sem graça, mesmo.
Desço da bike e procuro o familiar postinho para prendê-la, defendendo-me dos amigos do alheio. No bar, nenhum amigo meu, nem sequer um conhecido, a não ser o dono do bar. A bicicleta se deixa ficar, insensível às minhas diversas preocupações, que neste momento se resumem a saber se o meu cigarro está disponível para venda. Confirmado isto, procuro nos meus bolsos pelo dinheiro. Junto com algumas notas, vem um bilhete. Engraçado, eu não me lembrava desse bilhete… uma lista de supermercado da semana passada. Procuro um lixo para jogar o papelzinho metido a besta, que ousou se esconder no meu bolso por todo aquele tempo. Finalmente entrego o valor aproximado ao comerciante, que me devolve o troco com um olhar confiante. Eu sorrio. Ele sorri. Não vou conferir, porque senão ele pode se ofender. Guardo o troco no bolso e me volto para ver se a minha bike ainda está atada ao postinho.
Sim, ela está lá, nada garbosa, sem chamar a atenção, porque é uma bicicleta comum, dessas que não chamam a atenção. Nem cm o bagageiro que resolvi colocar na sua traseira. Vou até o postinho que, por sinal, não é dos mais limpos e liberto a bicicleta de sua correntinha. Uma correntinha, com um cadeadinho para um bicicletinha. É justo.
Subo na bicicleta e aceno para o dono do bar. Ele acena também, despedindo-se. Os homens do bar me olham, como seu eu devesse desaparecer rapidamente para não interromper suas conversas. Olho para um lado e para o outro — força do hábito. Começo a pedalar e, em poucos instantes, chego novamente à porta da minha casa. Algumas plantas e um matinho que teima em crescer por entre as fissuras do cimento me saúdam. Olá plantas! Voltei! Olho para a carreira de formigas. Oi formigas! Elas refizeram o seu caminho e não ligam a mínima para mim ou para a minha bicicleta…
Bela história! Caminho curto porém rico em detalhes.
Parabéns!